domingo, 25 de julho de 2010
Vida em manchetes
Viu só? Caiu outro avião.
- É. Desta vez foram 85 mortos.
- Já tomei uma decisão: nunca mais entro em avião.
- bobagem.
- Bobagem é morrer.
- Então não entra mais em carro, também. Proporcionalmente, morrem mais pessoas em acidentes de ...
- Mas não entrar em automóvel eu já tinha decidido há muito tempo! Você não notou que eu ando mais magro? É de tanto caminhar.
- Você caminha por onde?
- Como, por onde? Pela calçada, ué.
- Dá todo dia no jornal. “Ônibus desgovernado sobe na calçada e colhe pedestre. Vítima tinha jurado nunca mais entrar em qualquer veículo.” A chamada ironia do destino.
- Quer dizer que calçada...
- É perigosíssimo...
- O negócio é não sair de casa.
- E, é claro, mandar cortar a luz.
- Por que cortar a luz?
- Pensa num dedo molhado e distraído na tomada do banheiro. “Caiu da escada quando trocava lâmpada. Fratura na base do crânio.”
- Está certo. Corto a luz.
- “Tropeça no escuro e bate com a têmpora na quina da mesa. Morte instantânea.” E você vai cozinhar com quê?
- Gás.
- Escapamento. “Vizinhos sentiram cheiro de gás e forçaram a porta: era tarde”. Ou: “Explosão de botijão arrasa apartamento.”
- Fogareiro a querosene.
- “Tocha humana! Morreu antes que...”
- Comida entalada fria.
- Botulismo.
- Mando comprar comida fora.
- Espinha de peixe na garganta. Ossinho de galinha na traquéia. “Comida estragada, diarréia fatal!”
- Não preciso de comida. Vivo de injeções de vitamina...
- Hepatite...
- ... e oxigênio.
- Poluição. “Autópsia revela: pulmão tava pior que saco de café.” Estrôncio 90 francês.
- Vou viver no campo, longe da poluição, do trânsito...
- Picada de cobra. Coice de mula. Médico não chega a tempo.
- Não saio mais da cama!
- Está provado: 82 por cento das pessoas que morrem, morrem na cama!
- Mas eu escapo. A mim eles não pegam. Tenho um jeito infalível de escapar da morte.
- Qual é?
- Eu vou me suicidar.
Luis Fernando Veríssimo
- É. Desta vez foram 85 mortos.
- Já tomei uma decisão: nunca mais entro em avião.
- bobagem.
- Bobagem é morrer.
- Então não entra mais em carro, também. Proporcionalmente, morrem mais pessoas em acidentes de ...
- Mas não entrar em automóvel eu já tinha decidido há muito tempo! Você não notou que eu ando mais magro? É de tanto caminhar.
- Você caminha por onde?
- Como, por onde? Pela calçada, ué.
- Dá todo dia no jornal. “Ônibus desgovernado sobe na calçada e colhe pedestre. Vítima tinha jurado nunca mais entrar em qualquer veículo.” A chamada ironia do destino.
- Quer dizer que calçada...
- É perigosíssimo...
- O negócio é não sair de casa.
- E, é claro, mandar cortar a luz.
- Por que cortar a luz?
- Pensa num dedo molhado e distraído na tomada do banheiro. “Caiu da escada quando trocava lâmpada. Fratura na base do crânio.”
- Está certo. Corto a luz.
- “Tropeça no escuro e bate com a têmpora na quina da mesa. Morte instantânea.” E você vai cozinhar com quê?
- Gás.
- Escapamento. “Vizinhos sentiram cheiro de gás e forçaram a porta: era tarde”. Ou: “Explosão de botijão arrasa apartamento.”
- Fogareiro a querosene.
- “Tocha humana! Morreu antes que...”
- Comida entalada fria.
- Botulismo.
- Mando comprar comida fora.
- Espinha de peixe na garganta. Ossinho de galinha na traquéia. “Comida estragada, diarréia fatal!”
- Não preciso de comida. Vivo de injeções de vitamina...
- Hepatite...
- ... e oxigênio.
- Poluição. “Autópsia revela: pulmão tava pior que saco de café.” Estrôncio 90 francês.
- Vou viver no campo, longe da poluição, do trânsito...
- Picada de cobra. Coice de mula. Médico não chega a tempo.
- Não saio mais da cama!
- Está provado: 82 por cento das pessoas que morrem, morrem na cama!
- Mas eu escapo. A mim eles não pegam. Tenho um jeito infalível de escapar da morte.
- Qual é?
- Eu vou me suicidar.
Luis Fernando Veríssimo
Charles Chaplin
"Já perdoei erros quase imperdoáveis, tentei substituir pessoas insubstituíveis e esquecer pessoas inesquecíveis. Já fiz coisas por impulso, já me decepcionei com pessoas quando nunca pensei me decepcionar, mas também decepcionei alguém. Já abracei para proteger, já dei risada quando não podia, fiz amigos eternos, amei e fui amado, mas também fui rejeitado, fui amado e não amei. Já gritei e pulei de tanta felicidade, já vivi de AMOR e quebrei a cara muitas vezes! Já CHOREI ouvindo música e vendo fotos, já liguei só para ouvir a voz, me apaixonei por um sorriso, já pensei que fosse morrer de tanta saudade, tive medo de perder alguém especial (e acabei perdendo)! Mas vivi!Viva! Não passo pela vida... Você também não deveria passar! Bom mesmo é ir à luta com determinação, abraçar a vida e viver com paixão, perder com classe e vencer com ousadia, porque o mundo pertence a quem se atreve e a vida é muito para ser insignificante."
Grande Edgar - Luis Fernando Veríssimo
Já deve ter acontecido com você.
— Não está se lembrando de mim?
Você não está se lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado. Ele esta ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando sua resposta. Lembra ou não lembra?
Neste ponto, você tem uma escolha. Há três caminhos a seguir.
Um, curto, grosso e sincero.
— Não.
Você não está se lembrando dele e não tem por que esconder isso. O "Não" seco pode até insinuar uma reprimenda à pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém, meu caro. Pelo menos entre pessoas educadas. Você deveria ter vergonha. Passe bem. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem. Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.
— Não me diga. Você é o... o...
"Não me diga", no caso, quer dizer "Me diga, me diga". Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com sua agonia. Ou você pode dizer algo como:
— Desculpe, deve ser a velhice, mas...
Este também é um apelo à piedade. Significa "não tortura um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!". É uma maneira simpática de você dizer que não tem a menor idéia de quem ele é, mas que isso não se deve a insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua.
E há um terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.
— Claro que estou me lembrando de você!
Você não quer magoá-lo, é isso! Há provas estatísticas de que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata:
— Há quanto tempo!
Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um calhorda, ele o desafiará.
— Então me diga quem sou.
Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, e falsamente desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:
— Pois é.
Ou:
— Bota tempo nisso.
Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem será esse cara meu Deus? Enquanto resgata caixotes com fichas antigas no meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como jabs verbais.
— Como cê tem passado?
— Bem, bem.
— Parece mentira.
— Puxa.
(Um colega da escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?)
Ele esta falando:
—Pensei que você não fosse me reconhecer...
—O que é isso?!
—Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.
—E eu ia esquecer de você? Logo você?
—As pessoas mudam. Sei lá.
— Que idéia. (é o Ademar! Não, o Ademar já morreu. Você foi ao enterro dele. O... o... como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica. Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode chutá-lo amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas. "Que bom encontrar você!" e paf, chuta uma perna. "Que saudade!" e paf, chuta a outra. Quem é esse cara?)
— É incrível como a gente perde contato.
— É mesmo.
Uma tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.
— Cê tem visto alguém da velha turma?
— Só o Pontes.
— Velho Pontes! (Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos agora tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes...)
— Lembra do Croarê?
— Claro!
— Esse eu também encontro, às vezes, no tiro ao alvo.
— Velho Croarê. (Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum Croarê e nunca fez tiro ao alvo. É inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda cautela e partir para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)
— Rezende...
— Quem?
Não é ele. Pelo menos isto esta esclarecido.
— Não tinha um Rezende na turma?
— Não me lembro.
— Devo esta confundindo.
Silêncio. Você sente que esta prestes a ser desmascarado.
Ele fala:
— Sabe que a Ritinha casou?
— Não!
— Casou.
— Com quem?
— Acho que você não conheceu. O Bituca. (Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador . Você esta tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não conhece o Bituca?)
— Claro que conheci! Velho Bituca...
— Pois casaram.
É a sua chance. É a saída. Você passou ao ataque.
— E não avisou nada?
— Bem...
— Não. Espera um pouquinho. Todas essas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, O Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?
— É que a gente perdeu contato e...
— Mas meu nome tá na lista meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.
— É...
— E você acha que eu ainda não vou reconhecer você. Vocês é que se esqueceram de mim.
— Desculpe, Edgar. É que...
— Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam. ( Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima idéia de quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele esta na defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de "Já?!".)
— Tenho que ir. Olha, foi bom ver você, viu?
— Certo, Edgar. E desculpe, hein?
— O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido.
— Isso.
— Reunir a velha turma.
— Certo.
— E olha, quando falar com a Ritinha e o Manuca...
— Bituca.
— E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hein?
— Tchau, Edgar!
Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer "Grande Edgar". Mas jura que é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar "Você está me reconhecendo?" não dirá nem não. Sairá correndo.
Texto extraído do livro "As Mentiras que os Homens Contam", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2001, pág. 13.
— Não está se lembrando de mim?
Você não está se lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado. Ele esta ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando sua resposta. Lembra ou não lembra?
Neste ponto, você tem uma escolha. Há três caminhos a seguir.
Um, curto, grosso e sincero.
— Não.
Você não está se lembrando dele e não tem por que esconder isso. O "Não" seco pode até insinuar uma reprimenda à pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém, meu caro. Pelo menos entre pessoas educadas. Você deveria ter vergonha. Passe bem. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem. Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.
— Não me diga. Você é o... o...
"Não me diga", no caso, quer dizer "Me diga, me diga". Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com sua agonia. Ou você pode dizer algo como:
— Desculpe, deve ser a velhice, mas...
Este também é um apelo à piedade. Significa "não tortura um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!". É uma maneira simpática de você dizer que não tem a menor idéia de quem ele é, mas que isso não se deve a insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua.
E há um terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.
— Claro que estou me lembrando de você!
Você não quer magoá-lo, é isso! Há provas estatísticas de que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata:
— Há quanto tempo!
Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um calhorda, ele o desafiará.
— Então me diga quem sou.
Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, e falsamente desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:
— Pois é.
Ou:
— Bota tempo nisso.
Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem será esse cara meu Deus? Enquanto resgata caixotes com fichas antigas no meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como jabs verbais.
— Como cê tem passado?
— Bem, bem.
— Parece mentira.
— Puxa.
(Um colega da escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?)
Ele esta falando:
—Pensei que você não fosse me reconhecer...
—O que é isso?!
—Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.
—E eu ia esquecer de você? Logo você?
—As pessoas mudam. Sei lá.
— Que idéia. (é o Ademar! Não, o Ademar já morreu. Você foi ao enterro dele. O... o... como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica. Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode chutá-lo amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas. "Que bom encontrar você!" e paf, chuta uma perna. "Que saudade!" e paf, chuta a outra. Quem é esse cara?)
— É incrível como a gente perde contato.
— É mesmo.
Uma tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.
— Cê tem visto alguém da velha turma?
— Só o Pontes.
— Velho Pontes! (Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos agora tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes...)
— Lembra do Croarê?
— Claro!
— Esse eu também encontro, às vezes, no tiro ao alvo.
— Velho Croarê. (Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum Croarê e nunca fez tiro ao alvo. É inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda cautela e partir para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)
— Rezende...
— Quem?
Não é ele. Pelo menos isto esta esclarecido.
— Não tinha um Rezende na turma?
— Não me lembro.
— Devo esta confundindo.
Silêncio. Você sente que esta prestes a ser desmascarado.
Ele fala:
— Sabe que a Ritinha casou?
— Não!
— Casou.
— Com quem?
— Acho que você não conheceu. O Bituca. (Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador . Você esta tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não conhece o Bituca?)
— Claro que conheci! Velho Bituca...
— Pois casaram.
É a sua chance. É a saída. Você passou ao ataque.
— E não avisou nada?
— Bem...
— Não. Espera um pouquinho. Todas essas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, O Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?
— É que a gente perdeu contato e...
— Mas meu nome tá na lista meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.
— É...
— E você acha que eu ainda não vou reconhecer você. Vocês é que se esqueceram de mim.
— Desculpe, Edgar. É que...
— Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam. ( Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima idéia de quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele esta na defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de "Já?!".)
— Tenho que ir. Olha, foi bom ver você, viu?
— Certo, Edgar. E desculpe, hein?
— O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido.
— Isso.
— Reunir a velha turma.
— Certo.
— E olha, quando falar com a Ritinha e o Manuca...
— Bituca.
— E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hein?
— Tchau, Edgar!
Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer "Grande Edgar". Mas jura que é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar "Você está me reconhecendo?" não dirá nem não. Sairá correndo.
Texto extraído do livro "As Mentiras que os Homens Contam", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2001, pág. 13.
domingo, 18 de julho de 2010
Ser filho é padecer no purgatório. Carlos Eduardo Novaes
- Psssiu,psssiu.
- Eu? – virou-se Juvenal apontando para o próprio peito.
- É. O senhor mesmo – confirmou o comerciante à porta da loja -, venha cá, por favor.
Juvenal aproximou-se. O comerciante inclinou-se sobre ele e como que lhe segredando algo perguntou:
- O senhor tem mãe?
- Tenho.
- Gosta dela?
- Gosto.
- Então é com o senhor mesmo que eu quero falar. Vamos entrar. Tenho aqui um presente especial para sua mãe.
- Tem mesmo? Mas por que o senhor não entrega a ela pessoalmente?
- Porque ela é sua mãe, não é minha. O senhor é que deve entregar o presente.
- Está bem. Então o senhor me dá que eu dou pra ela.
- Dar, não – corrigiu o comerciante -, infelizmente não estamos em condições. As vendas só subiram 75%. Vou ter que lhe vender presente.
- Mas eu não estava pensando em comprar um presente agora para minha mãe. O aniversário dela é em novembro.
- Não é pelo aniversário. É pelo dia das mães.
- Dia das mães? – repetiu Juvenal sempre desligado. – Mães de quem?
- Mães de todos. É depois de amanhã, domingo.
- É mesmo? E quem disse isso?
- Bem...
- Está na Bíblia?
- Não. Ele foi criado por nós, comerciantes, para permitir que vocês manifestem seu amor e carinho por suas mães.
- Puxa, vocês são tão legais. Eu não sabia que os comerciantes gostavam tanto da mãe da gente.
- Pois acredite. E olhe, vou lhe contar um segredo: nós gostamos mais da mãe de vocês do que da nossa.
- É mesmo? E por que assim?
- Porque a nossa não deixa lucro. Pelo contrário. Todo ano no dia das mães sou obrigado a desfalcar a loja para presenteá-la.
- Ainda bem que só é um dia, hein? Se fosse, digamos um trimestre das mães, vocês estariam na maior miséria. O senhor dá presentes caros a sua mãe?
- Bem, pra falar a verdade, tem uns dez anos que eu não dou presente pra ela no dia das mães.
- E ela não reclama?
- Reclamava, até o dia que lhe disse que o dia das mães que era jogada comercial e que para mim o dia dela era todos os dias.
- Também acho.
- Não. Você não pode achar – esbravejou o dono da loja -, eu posso porque sou comerciante. Você não, você é consumidor. Tem que comprar um presente pra ela no dia das mães.
- Bem, já que é assim, então vamos ver o presente.
- Ótimo, assim é que se fala. Você tinha me dito que gostava de sua mãe, não é verdade? Gosta muito?
- Muito. Por quê?
- Porque nós temos aqui presentes para todos os gostos. Para quem gosta muito, para quem gosta pouco, para quem ainda está em dúvida.
- E o senhor dá desconto para quem gosta muito?
- Não. Nós só damos descontos para quem tiver mais de uma mãe. Fazemos, porém, um preço especial para juiz de futebol, que tem a mãe muito sacrificada. O senhor é juiz de futebol?
- Não. Sou bandeirinha – mentiu Juvenal.
- O senhor já foi xingado em campo alguma vez?
- Umas três.
- É pouco, só damos descontos para bandeirinhas que tenham sido xingados mais de cinco vezes. Vamos ver os presentes? Pra escolhermos o tipo de presente mais adequado eu preciso saber como é sua mãe.
- Mamãe? É uma mãe igual a qualquer outra. Não tem nada de especial. Ou melhor, de especial só tem o filho.
- Vejamos. Quando o senhor era garoto ela costumava dizer: “Saia agasalhado meu filho”, “não vá comer agora que o jantar já vai pra mesa”, “não ande no ladrilho descalço”, “não abra a geladeira sem camisa”, “não se esfalfe”, “não chegue tarde”, “não apanhe chuva”, costumava? Costumava dizer que o senhor estava comendo pouco e lhe entulhava de remédios?
- Exatamente – surpreendeu-se Juvenal -, parece até que o senhor foi filho da minha mãe.
- Ou o senhor foi filho da minha. Se ela era realmente assim, o melhor presente é esta TV em cores.
- Mas é o artigo mais caro que tem na loja. Não posso da aquela que é mais barata?
- Que é isso, meu senhor? Sua mãe merece o melhor.
- Mas eu não tenho dinheiro. Não posso dar o melhor.
- Que absurdo – indignou-se o comerciante -, se o senhor não pode dar o melhor para sua mãe vai dar a quem? Será que sua mãe não merece um sacrificiozinho de sua parte?
- Claro. Claro que merece.
- E, então? Pense nos sacrifícios que ela já fez pelo senhor.
- Estou pensando.
- Então pense que eu espero. Ela fez muitos?
- Muitos o quê?
- Sacrifícios.
- Não estou pensando nos sacrifícios. Estou pensando no preço.
Juvenal perguntou se podia ver outros artigos, talvez encontrasse algo mais em conta. “Posso mexer nas mercadorias da loja?”
- Lógico – disse o comerciante – esteja à vontade. Pode remexer o quanto quiser. Aqui vale tudo. Só não vale xingar a mãe.
Juvenal saiu percorrendo a loja, com o comerciante atrás, matraqueando no seu ouvido sua técnica de vendedor: “O senhor sabe o que é ser mãe? Ser mãe como dizia Coelho Neto, é andar chorando num sorriso/ ser mãe é ter um mundo e não ter nada/ ser mãe é padecer num paraíso/ ser mãe é ter filho que lhe compre uma TV em cores ou um ar-condicionado ou uma geladeira, um secador de cabelos, uma cinta, um jogo de estofados, uma mobília de quarto...”
- Mobília de quarto?
- E por que não? Armário, penteadeira, mesinha de cabeceira de cama.
[...]
- Já resolvi – respondeu Juvenal decidido.
– Não vou dar nada.
- O quê? – vociferou o comerciante. – O senhor não vai dar nada para aquela que lhe deu tudo?
- Vou lhe dar um beijo.
- Um beijo? O senhor tem coragem? O senhor é realmente um filho desnaturado. Em pleno século XX, em plena sociedade de consumo, o senhor vai chegar em casa de sua mãe e com a maior cara de pau lhe dar um beijo? Um beijo? Que espécie de filho é o senhor? Um beijo?
- Bem, talvez dois ou três.
- Então leve ao menos esta pasta de dentes aqui. Contém genitol e mantém o hálito puro na hora de beijar sua mãe.
Carlos Eduardo Novaes
Vocabulário:
Esfalfe,esfalfado: cansado, fatigado
- Eu? – virou-se Juvenal apontando para o próprio peito.
- É. O senhor mesmo – confirmou o comerciante à porta da loja -, venha cá, por favor.
Juvenal aproximou-se. O comerciante inclinou-se sobre ele e como que lhe segredando algo perguntou:
- O senhor tem mãe?
- Tenho.
- Gosta dela?
- Gosto.
- Então é com o senhor mesmo que eu quero falar. Vamos entrar. Tenho aqui um presente especial para sua mãe.
- Tem mesmo? Mas por que o senhor não entrega a ela pessoalmente?
- Porque ela é sua mãe, não é minha. O senhor é que deve entregar o presente.
- Está bem. Então o senhor me dá que eu dou pra ela.
- Dar, não – corrigiu o comerciante -, infelizmente não estamos em condições. As vendas só subiram 75%. Vou ter que lhe vender presente.
- Mas eu não estava pensando em comprar um presente agora para minha mãe. O aniversário dela é em novembro.
- Não é pelo aniversário. É pelo dia das mães.
- Dia das mães? – repetiu Juvenal sempre desligado. – Mães de quem?
- Mães de todos. É depois de amanhã, domingo.
- É mesmo? E quem disse isso?
- Bem...
- Está na Bíblia?
- Não. Ele foi criado por nós, comerciantes, para permitir que vocês manifestem seu amor e carinho por suas mães.
- Puxa, vocês são tão legais. Eu não sabia que os comerciantes gostavam tanto da mãe da gente.
- Pois acredite. E olhe, vou lhe contar um segredo: nós gostamos mais da mãe de vocês do que da nossa.
- É mesmo? E por que assim?
- Porque a nossa não deixa lucro. Pelo contrário. Todo ano no dia das mães sou obrigado a desfalcar a loja para presenteá-la.
- Ainda bem que só é um dia, hein? Se fosse, digamos um trimestre das mães, vocês estariam na maior miséria. O senhor dá presentes caros a sua mãe?
- Bem, pra falar a verdade, tem uns dez anos que eu não dou presente pra ela no dia das mães.
- E ela não reclama?
- Reclamava, até o dia que lhe disse que o dia das mães que era jogada comercial e que para mim o dia dela era todos os dias.
- Também acho.
- Não. Você não pode achar – esbravejou o dono da loja -, eu posso porque sou comerciante. Você não, você é consumidor. Tem que comprar um presente pra ela no dia das mães.
- Bem, já que é assim, então vamos ver o presente.
- Ótimo, assim é que se fala. Você tinha me dito que gostava de sua mãe, não é verdade? Gosta muito?
- Muito. Por quê?
- Porque nós temos aqui presentes para todos os gostos. Para quem gosta muito, para quem gosta pouco, para quem ainda está em dúvida.
- E o senhor dá desconto para quem gosta muito?
- Não. Nós só damos descontos para quem tiver mais de uma mãe. Fazemos, porém, um preço especial para juiz de futebol, que tem a mãe muito sacrificada. O senhor é juiz de futebol?
- Não. Sou bandeirinha – mentiu Juvenal.
- O senhor já foi xingado em campo alguma vez?
- Umas três.
- É pouco, só damos descontos para bandeirinhas que tenham sido xingados mais de cinco vezes. Vamos ver os presentes? Pra escolhermos o tipo de presente mais adequado eu preciso saber como é sua mãe.
- Mamãe? É uma mãe igual a qualquer outra. Não tem nada de especial. Ou melhor, de especial só tem o filho.
- Vejamos. Quando o senhor era garoto ela costumava dizer: “Saia agasalhado meu filho”, “não vá comer agora que o jantar já vai pra mesa”, “não ande no ladrilho descalço”, “não abra a geladeira sem camisa”, “não se esfalfe”, “não chegue tarde”, “não apanhe chuva”, costumava? Costumava dizer que o senhor estava comendo pouco e lhe entulhava de remédios?
- Exatamente – surpreendeu-se Juvenal -, parece até que o senhor foi filho da minha mãe.
- Ou o senhor foi filho da minha. Se ela era realmente assim, o melhor presente é esta TV em cores.
- Mas é o artigo mais caro que tem na loja. Não posso da aquela que é mais barata?
- Que é isso, meu senhor? Sua mãe merece o melhor.
- Mas eu não tenho dinheiro. Não posso dar o melhor.
- Que absurdo – indignou-se o comerciante -, se o senhor não pode dar o melhor para sua mãe vai dar a quem? Será que sua mãe não merece um sacrificiozinho de sua parte?
- Claro. Claro que merece.
- E, então? Pense nos sacrifícios que ela já fez pelo senhor.
- Estou pensando.
- Então pense que eu espero. Ela fez muitos?
- Muitos o quê?
- Sacrifícios.
- Não estou pensando nos sacrifícios. Estou pensando no preço.
Juvenal perguntou se podia ver outros artigos, talvez encontrasse algo mais em conta. “Posso mexer nas mercadorias da loja?”
- Lógico – disse o comerciante – esteja à vontade. Pode remexer o quanto quiser. Aqui vale tudo. Só não vale xingar a mãe.
Juvenal saiu percorrendo a loja, com o comerciante atrás, matraqueando no seu ouvido sua técnica de vendedor: “O senhor sabe o que é ser mãe? Ser mãe como dizia Coelho Neto, é andar chorando num sorriso/ ser mãe é ter um mundo e não ter nada/ ser mãe é padecer num paraíso/ ser mãe é ter filho que lhe compre uma TV em cores ou um ar-condicionado ou uma geladeira, um secador de cabelos, uma cinta, um jogo de estofados, uma mobília de quarto...”
- Mobília de quarto?
- E por que não? Armário, penteadeira, mesinha de cabeceira de cama.
[...]
- Já resolvi – respondeu Juvenal decidido.
– Não vou dar nada.
- O quê? – vociferou o comerciante. – O senhor não vai dar nada para aquela que lhe deu tudo?
- Vou lhe dar um beijo.
- Um beijo? O senhor tem coragem? O senhor é realmente um filho desnaturado. Em pleno século XX, em plena sociedade de consumo, o senhor vai chegar em casa de sua mãe e com a maior cara de pau lhe dar um beijo? Um beijo? Que espécie de filho é o senhor? Um beijo?
- Bem, talvez dois ou três.
- Então leve ao menos esta pasta de dentes aqui. Contém genitol e mantém o hálito puro na hora de beijar sua mãe.
Carlos Eduardo Novaes
Vocabulário:
Esfalfe,esfalfado: cansado, fatigado
sábado, 17 de julho de 2010
Aquele casal (Carlos Drummond de Andrade)
Aquele casal, o marido me honra com suas confidências:
- Ultimamente, a Elsa anda um pouco estranha. Não sei o que é, mas não me agrada a sua evolução.
- Como assim?
- Deu para usar estampados berrantes, de mau gosto, ela que era tão discreta no vestir.
- É a moda.
- Pode ser o que você quiser, porém minha mulher jamais se permitiu esses desfrutes.
- Deixe Dona Elsa ser elegante. Não há desfrute em seguir o figurino.
- Se fosse só o figurino. São as maneiras, os gestos.
- Que é que tem as maneiras, os gestos?
- A Elsa parece uma menina de quinze anos. Ficou com os movimentos mais leves, um ar desembaraçado que ela não tinha, e que não vai bem com uma senhora casada.
- Posso dar opinião? As senhoras casadas não perdem a condição feminina, e pode até realçá-la por uma graça experiente.
Fixou-me suspeitoso:
- Que é que está insinuando?
- Nada. A mulher casada desabrochou, não é mais um projeto, pode revelar melhor o encanto natural da personalidade.
- Pois fique com suas teorias, que eu não quero saber de minha mulher revelar seu encanto a ninguém.
- Perdão, eu...
- Já sei. Estava querendo desculpar a Elsa.
- Desculpar de quê?
- De tudo que ela vem fazendo.
- Eu ignoro tudo, e adivinho que não há nada senão...
- Senão o quê?
- Aquilo que o dicionário chama de ente de razão, uma fantasia completamente destituída de razão.
- Acha então que estou maluco?
- Acho que está sonhando coisas.
- E a flor que ela trouxe ontem para a casa é sonho? Me diga: é sonho?
- Que é que tem trazer uma flor para casa?
- Veio do oculista e trouxe uma rosa. Acha direito?
- Por que não?
- Eu apertei, ela me disse que foi o oculista que deu a ela. Estava num vaso, ela achou bonita, ele deu.
- E daí?
- Então uma senhora casada vai ao oculista e o oculista lhe dá uma rosa? Que lhe parece? - Que ele é gentil, apenas.
- Pois eu não vou nessa gentileza de oculista. Não há rosas nos consultórios de oftalmologia. E que houvesse. Tem propósito uma coisa dessas? Ela acabou chorando, dizendo que eu sou um bruto, um rinoceronte. Engraçado. Minha mulher vem com uma rosa para casa, uma rosa dada por um homem, e eu não devo achar ruim, eu tenho que achar muito natural.
- Desde quando é proibido uma senhora ganhar flor de uma pessoa atenciosa? Que sentido erótico tem isso?
- Tem muito. Principalmente se é rosa. Ora, não tente negar o significado das ordens florais entre dois sexos. O oculista não podia dar essa flor, nem ela podia aceitar. O pior é que não deve ter sido o oculista.
- Quem foi, então?
- Sei lá. Numa cidade do tamanho do Rio, posso saber quem deu uma rosa a minha mulher?
- Vai ver que ela comprou na loja de flores da esquina, e disse aquilo só para fazer charminho.
- Ela nunca fez isso. Se fez agora, foi para preparar terreno, quando chegar aqui uma corbelha de antúrios e hibiscos.
- Não diga uma coisa dessas.
- Digo o que penso. Estou inteiramente lúcido, só me conduzo pelo raciocínio. Repare no encadeamento: os vestidos modernos; os modos (só vendo a maneira dela se sentar no sofá); a rosa, que ela foi correndo levar para a mesinha de cabeceira do quarto. Cada uma dessas coisas é um indício; reunidas, são a evidência.
- Permita que eu discorde.
- Discorda sem argumentos. A Elsa não é mais a Elsa. Demora mais tempo no espelho. Fica olhando um ponto no espaço, abstrata. Depois, sorri. Estou decidido.
-A quê?
- Vou segui-la daqui por diante. Contrato um detetive. E logo que tenha a prova, me desquito.
- Não vai ter prova nenhuma, juro. Ponho a mão no fogo por Dona Elsa.
- Pensei que você fosse meu amigo. Fiz mal em me abrir. Vamos mudar de assunto que ela vem chegando. Mas repare só que os olhos de Capitu que ela tem, eu nunca havia reparado nisso!
Esquecia-me de dizer que meu amigo tem 82 anos, e Dona Elsa, 79.
- Ultimamente, a Elsa anda um pouco estranha. Não sei o que é, mas não me agrada a sua evolução.
- Como assim?
- Deu para usar estampados berrantes, de mau gosto, ela que era tão discreta no vestir.
- É a moda.
- Pode ser o que você quiser, porém minha mulher jamais se permitiu esses desfrutes.
- Deixe Dona Elsa ser elegante. Não há desfrute em seguir o figurino.
- Se fosse só o figurino. São as maneiras, os gestos.
- Que é que tem as maneiras, os gestos?
- A Elsa parece uma menina de quinze anos. Ficou com os movimentos mais leves, um ar desembaraçado que ela não tinha, e que não vai bem com uma senhora casada.
- Posso dar opinião? As senhoras casadas não perdem a condição feminina, e pode até realçá-la por uma graça experiente.
Fixou-me suspeitoso:
- Que é que está insinuando?
- Nada. A mulher casada desabrochou, não é mais um projeto, pode revelar melhor o encanto natural da personalidade.
- Pois fique com suas teorias, que eu não quero saber de minha mulher revelar seu encanto a ninguém.
- Perdão, eu...
- Já sei. Estava querendo desculpar a Elsa.
- Desculpar de quê?
- De tudo que ela vem fazendo.
- Eu ignoro tudo, e adivinho que não há nada senão...
- Senão o quê?
- Aquilo que o dicionário chama de ente de razão, uma fantasia completamente destituída de razão.
- Acha então que estou maluco?
- Acho que está sonhando coisas.
- E a flor que ela trouxe ontem para a casa é sonho? Me diga: é sonho?
- Que é que tem trazer uma flor para casa?
- Veio do oculista e trouxe uma rosa. Acha direito?
- Por que não?
- Eu apertei, ela me disse que foi o oculista que deu a ela. Estava num vaso, ela achou bonita, ele deu.
- E daí?
- Então uma senhora casada vai ao oculista e o oculista lhe dá uma rosa? Que lhe parece? - Que ele é gentil, apenas.
- Pois eu não vou nessa gentileza de oculista. Não há rosas nos consultórios de oftalmologia. E que houvesse. Tem propósito uma coisa dessas? Ela acabou chorando, dizendo que eu sou um bruto, um rinoceronte. Engraçado. Minha mulher vem com uma rosa para casa, uma rosa dada por um homem, e eu não devo achar ruim, eu tenho que achar muito natural.
- Desde quando é proibido uma senhora ganhar flor de uma pessoa atenciosa? Que sentido erótico tem isso?
- Tem muito. Principalmente se é rosa. Ora, não tente negar o significado das ordens florais entre dois sexos. O oculista não podia dar essa flor, nem ela podia aceitar. O pior é que não deve ter sido o oculista.
- Quem foi, então?
- Sei lá. Numa cidade do tamanho do Rio, posso saber quem deu uma rosa a minha mulher?
- Vai ver que ela comprou na loja de flores da esquina, e disse aquilo só para fazer charminho.
- Ela nunca fez isso. Se fez agora, foi para preparar terreno, quando chegar aqui uma corbelha de antúrios e hibiscos.
- Não diga uma coisa dessas.
- Digo o que penso. Estou inteiramente lúcido, só me conduzo pelo raciocínio. Repare no encadeamento: os vestidos modernos; os modos (só vendo a maneira dela se sentar no sofá); a rosa, que ela foi correndo levar para a mesinha de cabeceira do quarto. Cada uma dessas coisas é um indício; reunidas, são a evidência.
- Permita que eu discorde.
- Discorda sem argumentos. A Elsa não é mais a Elsa. Demora mais tempo no espelho. Fica olhando um ponto no espaço, abstrata. Depois, sorri. Estou decidido.
-A quê?
- Vou segui-la daqui por diante. Contrato um detetive. E logo que tenha a prova, me desquito.
- Não vai ter prova nenhuma, juro. Ponho a mão no fogo por Dona Elsa.
- Pensei que você fosse meu amigo. Fiz mal em me abrir. Vamos mudar de assunto que ela vem chegando. Mas repare só que os olhos de Capitu que ela tem, eu nunca havia reparado nisso!
Esquecia-me de dizer que meu amigo tem 82 anos, e Dona Elsa, 79.
Quando as mulheres dominarem o mundo (Luiz Fernando Veríssimo)
Conversa entre pai e filho, por volta do ano de 2031, sobre como as mulheres dominaram o mundo.
- Foi assim que tudo aconteceu, meu filho... Elas planejaram o negócio discretamente, para que não notássemos. Primeiro elas pediram igualdade entre os sexos. Os homens, bobos, nem deram muita bola para isso na ocasião.
Parecia brincadeira. Pouco a pouco, elas conquistaram cargos estratégicos: Diretoras de Orçamento, empresárias, Chefes de Gabinete, Gerentes disso ou daquilo.
- E aí, papai?
- Ah, os homens foram muito ingênuos. Enquanto elas conversavam ao telefone durante horas a fio, eles pensavam que o assunto fosse telenovela... Triste engano. De fato, era a rebelião se expandindo nos inocentes intervalos comerciais. Oi querida!, por exemplo, era a senha que identificava as líderes.Celulite eram as células que formavam a organização. Quando queriam se referir aos maridos, diziam O regime.
- E vocês? não perceberam nada?
- Ficávamos jogando futebol no clube, despreocupado.
E o que é pior: continuávamos a ajudá-las quando pediam. Carregar malas no aeroporto, consertar torneira, abrir potes de azeitona, ceder a vez nos naufrágios.
Essas coisas de homem.
- Aí, veio o golpe mundial!?
- Sim o golpe. O estopim foi o episódio Hillary-Mônica. Uma farsa.
Tudo armado para desmoralizar o homem mais poderoso o do mundo. Pegaram-no pelo ponto fraco, coitado. Já lhe contei, né? A esposa e a amante, que na TV posavam de rivais eram, no fundo, cúmplices de uma trama dia bélica.
Pobre Presidente...
- Como era mesmo o nome dele?
- William, acha. Tinha um apelido, mas esqueci...
Desculpe, filho, já faz tanto tempo...
- Tudo bem, papai. não tem importância.
Continue...
- Naquela manha a Casa Branca apareceu pintada de cor-de-rosa. Era o sinal que as mulheres do mundo inteiro aguardavam.
A rebelião tinha sido vitoriosa! Então elas assumiram o poder em todo o planeta. Aquela torre do relógio em Londres chamava-se Big-Ben, e não Big-Betty, como agora...
Só os homens disputavam a Copa do Mundo, sabia? Dia de desfile de moda não era feriado. Essa Secretária Geral da ONU era uma simples cantora.
Depois trocou o nome, de Madonna para Mandona.
- Pai, conta mais...
- Bem filho... O resto você já sabe. Instituíram o Robô Troca-Pneu como equipamento obrigatório de todos os carros... A Lei do Já-Pra-Casa, proibindo os homens de tomar cerveja depois do trabalho...
E, é claro, a famigerada semana da TPM, uma vez por mês...
- TPM ???
- Sim, TPM... A Temporada Provável de Mísseis... É quando elas ficam irritadíssimas e o mundo corre perigo de confronto nuclear....
- Sinto um frio na barriga só de pensar, pai...
- Sssshhh! Escutei barulho de carro chegando. Disfarça e continua picando essas batatas...
- Foi assim que tudo aconteceu, meu filho... Elas planejaram o negócio discretamente, para que não notássemos. Primeiro elas pediram igualdade entre os sexos. Os homens, bobos, nem deram muita bola para isso na ocasião.
Parecia brincadeira. Pouco a pouco, elas conquistaram cargos estratégicos: Diretoras de Orçamento, empresárias, Chefes de Gabinete, Gerentes disso ou daquilo.
- E aí, papai?
- Ah, os homens foram muito ingênuos. Enquanto elas conversavam ao telefone durante horas a fio, eles pensavam que o assunto fosse telenovela... Triste engano. De fato, era a rebelião se expandindo nos inocentes intervalos comerciais. Oi querida!, por exemplo, era a senha que identificava as líderes.Celulite eram as células que formavam a organização. Quando queriam se referir aos maridos, diziam O regime.
- E vocês? não perceberam nada?
- Ficávamos jogando futebol no clube, despreocupado.
E o que é pior: continuávamos a ajudá-las quando pediam. Carregar malas no aeroporto, consertar torneira, abrir potes de azeitona, ceder a vez nos naufrágios.
Essas coisas de homem.
- Aí, veio o golpe mundial!?
- Sim o golpe. O estopim foi o episódio Hillary-Mônica. Uma farsa.
Tudo armado para desmoralizar o homem mais poderoso o do mundo. Pegaram-no pelo ponto fraco, coitado. Já lhe contei, né? A esposa e a amante, que na TV posavam de rivais eram, no fundo, cúmplices de uma trama dia bélica.
Pobre Presidente...
- Como era mesmo o nome dele?
- William, acha. Tinha um apelido, mas esqueci...
Desculpe, filho, já faz tanto tempo...
- Tudo bem, papai. não tem importância.
Continue...
- Naquela manha a Casa Branca apareceu pintada de cor-de-rosa. Era o sinal que as mulheres do mundo inteiro aguardavam.
A rebelião tinha sido vitoriosa! Então elas assumiram o poder em todo o planeta. Aquela torre do relógio em Londres chamava-se Big-Ben, e não Big-Betty, como agora...
Só os homens disputavam a Copa do Mundo, sabia? Dia de desfile de moda não era feriado. Essa Secretária Geral da ONU era uma simples cantora.
Depois trocou o nome, de Madonna para Mandona.
- Pai, conta mais...
- Bem filho... O resto você já sabe. Instituíram o Robô Troca-Pneu como equipamento obrigatório de todos os carros... A Lei do Já-Pra-Casa, proibindo os homens de tomar cerveja depois do trabalho...
E, é claro, a famigerada semana da TPM, uma vez por mês...
- TPM ???
- Sim, TPM... A Temporada Provável de Mísseis... É quando elas ficam irritadíssimas e o mundo corre perigo de confronto nuclear....
- Sinto um frio na barriga só de pensar, pai...
- Sssshhh! Escutei barulho de carro chegando. Disfarça e continua picando essas batatas...
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