terça-feira, 21 de setembro de 2010

Vida em Manchetes

Viu só? Caiu outro avião.
- É. Desta vez foram 85 mortos.
- Já tomei uma decisão: nunca mais entro em avião.
- bobagem.
- Bobagem é morrer.
- Então não entra mais em carro, também. Proporcionalmente, morrem mais pessoas em acidentes de ...
- Mas não entrar em automóvel eu já tinha decidido há muito tempo! Você não notou que eu ando mais magro? É de tanto caminhar.
- Você caminha por onde?
- Como, por onde? Pela calçada, ué.
- Dá todo dia no jornal. “Ônibus desgovernado sobe na calçada e colhe pedestre. Vítima tinha jurado nunca mais entrar em qualquer veículo.” A chamada ironia do destino.
- Quer dizer que calçada...
- É perigosíssimo...
- O negócio é não sair de casa.
- E, é claro, mandar cortar a luz.
- Por que cortar a luz?
- Pensa num dedo molhado e distraído na tomada do banheiro. “Caiu da escada quando trocava lâmpada. Fratura na base do crânio.”
- Está certo. Corto a luz.
- “Tropeça no escuro e bate com a têmpora na quina da mesa. Morte instantânea.” E você vai cozinhar com quê?
- Gás.
- Escapamento. “Vizinhos sentiram cheiro de gás e forçaram a porta: era tarde”. Ou: “Explosão de botijão arrasa apartamento.”
- Fogareiro a querosene.
- “Tocha humana! Morreu antes que...”
- Comida entalada fria.
- Botulismo.
- Mando comprar comida fora.
- Espinha de peixe na garganta. Ossinho de galinha na traquéia. “Comida estragada, diarréia fatal!”
- Não preciso de comida. Vivo de injeções de vitamina...
- Hepatite...
- ... e oxigênio.
- Poluição. “Autópsia revela: pulmão tava pior que saco de café.” Estrôncio 90 francês.
- Vou viver no campo, longe da poluição, do trânsito...
- Picada de cobra. Coice de mula. Médico não chega a tempo.
- Não saio mais da cama!
- Está provado: 82 por cento das pessoas que morrem, morrem na cama!
- Mas eu escapo. A mim eles não pegam. Tenho um jeito infalível de escapar da morte.
- Qual é?
- Eu vou me suicidar.
Luis Fernando Veríssimo

terça-feira, 7 de setembro de 2010

A dança das gerações

De repente, pais jovens, que sempre se consideravam modernos e liberais, já não conseguem compreender a filha. As idéias, os valores, a linguagem, as roupas, o cabelo... tudo parece estar tão distante...Conflito de gerações?
Pais
Por casualidade, os três ficaram lado a lado na igreja. Tinha mais ou menos a mesma idade do pai da noiva. Que acabara de passar Por eles, radiante com a filha pelo braço, a caminho do altar.
- É – disse um deles -, esse deu sorte.
Os outros dois concordaram, com ruídos indefinidos.
- A minha se juntou.
- A minha já declarou, textualmente, que casamento não ta com nada.
- Pior é a minha.
- Ah, é?
- Casou num ritual novo aí. Nem sei que religião é. No meio do campo. Eu me recusei a ir. A mulher foi e voltou com urticária.
- A minha avisou que tinha se juntado quando já estavam juntos. Achou que eu gostaria de saber. Não gostei.
- Eu estou tentando convencer a minha filha a casar. Não importa com quem. Desde que tenha cerimônia. Já disse até que eu forneço o noivo. Pago o vestido, pago a igreja, pago o coro, pago a festa e a lua-de-mel e ainda entro com o noivo. Sabe o que ela me diz?
- Sei.
- “Burguesão”.
- É. A minha disse que talvez até se case um dia, quando os filhos tiverem idade para carregar cauda do vestido. Quer dizer, ainda nos gozam.
- Querem nos matar. Querem nos matar.
- E eu que sonhava com essa cena?
- Nem me fala.
- Sou capaz até de alugar uma igreja, contratar a música, botar uma fatiota e desfilar sozinho pelo corredor. Só para ter a sensação.
- Acho que a gente deveria fazer um trato. O primeiro da nossa geração que tivesse uma filha disposta a casar na igreja, com vestido e tudo, convidaria os outros para entrar junto com ela na igreja. Cada um desfilaria uma determinada distância de braço com a noiva, depois passaria para outro, e assim até o altar.

Luis Fernando Veríssimo

Vocabulário: burguês: modernamente, indivíduo rico ou da classe média, pessoa presa a bens materiais, conservador, reacionário; fatiota: o mesmo que fato, roupa, traje.